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Uma Defesa à Raiva

  • Foto do escritor: Gabriel Filipe
    Gabriel Filipe
  • 27 de fev.
  • 4 min de leitura

Alguns consulentes me olham meio estranho, às vezes, quando expresso alguma reação "positiva" (problematizaremos esse termo em breve!), como um sorriso ou um comentário encorajador, a partir de algum momento em que ficaram furiosos ao falar de algo dentro da sessão. Esse estranhamento já foi verbalizado como um questionamento mais ou menos de "Ei, a raiva não era uma emoção ruim? Você não deveria estar preocupado com o que eu estou fazendo, ou me policiando sobre? Como que o psicólogo tá feliz que eu tô com raiva?" Pois bem, vamos falar disso então.


Primeiramente, o que é a raiva? Não podemos discutir se ela é boa ou ruim sem primeiro entender o que ela é, afinal. Em um artigo científico eu naturalmente buscaria uma definição técnico-teórica mas, para fins desse texto, utilizemos uma definição de dicionário: "Estado ou sentimento de rancor causado por irritação, aborrecimento ou rejeição", "Apetite ávido", "Paixão ardente", "Grande aversão a algo ou alguém; ojeriza". Tudo isso segundo o dicionário Michaelis (2025). Deixei os dois do meio pois eles muito interessam aos Gestalt-terapeutas, mas fiquemos por enquanto com a primeira e a última definições, que percebo serem os empregos mais comuns no cotidiano. Para fins do primeiro, definamos também rancor, segundo o mesmo dicionário: "Ódio profundo; não manifestado"; "Grande mágoa; ressentimento". Definida assim, já tenho meu primeiro argumento em defesa da raiva: ela é um grande informante emocional.


A raiva não se produz do nada. Como antigamente dizia um colega de faculdade de minha mãe: "Se nada jaz ao fundo, como algo pode vir ao encontro?". Ele não estava exatamente falando de raiva mas, segundo a definição que estamos usando de raiva, a frase vem muito a calhar. "Grande aversão a algo". "Grande mágoa causada por irritação, aborrecimento ou rejeição". Algo jaz ao fundo da raiva. A existência da raiva no corpo revela um incômodo, uma frustração, uma mágoa. Alguma coisa não está certa.


Em muitos casos, é claro, o objeto da nossa raiva está muito claro e distinto, como bem gostaria Descartes. Ser deixado na mão por um amigo ou parente, perder algo de valor, coisas assim. No entanto, em outros, o motivo da raiva já não é tão explícito. Ou, ainda, algum motivo imediato, mas esse motivo imediato não dá conta de explicar a imensidão da raiva sentida. Nesses casos, perceber a própria raiva e conhecer se o tamanho dela é ou não usual para si pode ser um caminho direto para perceber que algo está lhe incomodando, talvez algo que você nem tinha notado que era um problema para si. Portanto, a presença da raiva, e o encontro com ela, é uma oportunidade de desvelar incômodos a serem resolvidos que não se tinha ideia até então.


O exposto até agora revela uma das virtudes da raiva, ao meu ver. Mas tem uma que é ainda mais importante:


O impulso de ação.


A raiva não costuma se tratar de um mero estado mental, como a experiência empírica de muitos poderia atestar. Ela vem carregada de movimento, ou mais especificamente de uma ânsia por movimento. Em termos de estereótipos, esse movimento costuma ser representado como um acesso de f0rça física, vociferações ou outros atos considerados "destrutivos", ou "descontrolados". Mas embora seja inegável que esse tipo de impulso muitas vezes advém da raiva, penso ser incorreto reduzi-la tão somente a esse tipo de movimento. Existe uma potência que a raiva propicia que, canalizada através do corpo do indivíduo, permite que ele transforme a realidade ao seu redor e a sua própria vida, tanto através da destruição (daquilo que causa aversão, a exemplo de um relacionamento tóxico ou de um vínculo empregatício abusivo), como também da construção (de uma obra artística, ou a realização de algum compromisso). Seria talvez a famosa "força do ódio".


Na contramão disso estão todos os discursos que "demonizam" a raiva e a colocam no rol de emoções "negativas", que não devem ser sentidas e, quando vierem, devem ser logo adestradas e domadas. Entendo que sentir raiva pode ser desagradável, e usualmente há consequências sociais para sua expressão desinibida, mas transformar a raiva (e a tristeza!) em inimiga é o caminho para a apatia, para a diminuição das possibilidades de mudança, visto que se está abrindo mão de uma fonte importante de energia vital.


Em face de tudo isso, podemos retomar a conversa do início do texto, do porquê de eu ficar satisfeito de ver os meus consulentes expressando raiva: É porque estão vivos. Eu prefiro mil vezes ver uma pessoa com raiva, me contando furiosamente das coisas que têm lhe feito subir pelas paredes, do que ver essa pessoa sem emoção, sem expressão, apática. A ampliação das formas de canalizar esse sentimento, permitem que a raiva seja uma ótima aliada no processo terapêutico, nos ajudando não apenas a entender que algo está errado, mas identificar o que está errado e encontrar a motivação de mudar o que carece de ser mudado.


Portanto, não se acanhem: Libertem sua fúria na terapia. É pra isso que ela serve.



REFERÊNCIAS

RAIVA. In: MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2025. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/raiva/>. Acesso em: 27/02/2025.

 
 
 

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